"Quem sabe a simplicidade sincera do palhaço consiga tocar o coração da bailarina transformando um cafuné de cuidado em um beijo apaixonado..."
Estávamos em meados de maio quando o bilhete foi deixado num cantinho do camarim. O novo circo chegara a um novo destino. Havia novos integrantes, novos números, um público ansioso para acompanhar o novo espetáculo.
Dessa vez o domador não era o personagem principal. O malabarista sim caíra no gosto da plateia. Era espontâneo, divertido, seguro de si... Um fanfarrão sem limites na hora de entreter... Daqueles artistas de performances marcantes, impossíveis de não agradar. O cara que estava "no seu momento"...
Ainda assim, foi de lá do meio da trupe que surgiu o rapaz com pinta de menino, olhos pequenos envoltos pela maquiagem branca e nariz encoberto por uma bola vermelha. Para o palhaço, se destacar depois da apresentação do malabarista não era tarefa fácil. Mas ele encarou o desafio.
Chegou de mansinho, se fez de amigo e, mesmo não sendo o queridinho de muitos espectadores, se aproximou da bailarina. Com jeito tímido e carinhoso, o palhaço ofereceu companhia, ouvidos atentos, um olhar cauteloso e sempre protetor. Não demorou muito para ela se render aos seus encantos. Em pouco tempo eles podiam ser vistos juntos em todos os cantos do circo.
Até na noite de público ruim e performance lamentável, ele estava lá. A apresentação dela não tinha sido das melhores e apesar da bailarina tentar esconder de todos a decepção que insistia em transbordar pelos olhos, foi o palhaço que enxugou cada lágrima que escorreu pelo seu rosto.
Não demorou muito também pra que, em outra sessão completamente despretensiosa, a moça sentisse um daqueles raros apertos no peito quando assistiu à performance do rapaz. O número era o mesmo de toda a temporada, não tinha nada de excepcional. Mas naquela noite de inverno, algo aconteceu. As estrelas, amarelas como nunca, brilharam de uma forma diferente e a bailarina pôde enfim enxergar além da maquiagem e do nariz vermelho.
Não mencionou uma palavra sobre o assunto. Deixou o destino chegar a seu tempo... e finalmente o beijo apaixonado do bilhete pôde virar realidade...
O que pouca gente sabe é que a vida no circo é 90% ilusão. Somos todos artistas - é verdade - e por isso, muitas vezes nos esquecemos como é ser verdadeiro no mundo real.
Foi o que aconteceu...
Com o passar dos dias, a pretensão de que aquele palhaço do grupo se tornaria o personagem principal de um grande número, foi afundando no picadeiro. Afinal, para se fazer sucesso no circo, é preciso fazer graça para os outros e não com os outros. É preciso usar bem a experiência em gargalhadas e se necessário até brincar com a própria desgraça pra fazer a felicidade alheia... O bom profissional do riso não pode ser egoísta, tem que se doar por inteiro... nem que seja para conseguir um único sorriso.
Assim, chegara a hora de dar mais um adeus.
Para a maior parte da trupe, em breve ele seria apenas mais um cara legal e divertido que passou por ali.
Para a bailarina não... para ela, a ilusão do número encantador e quase perfeito que havia a conquistado em doses homeopáticas, tinha se desfeito por trás das cortinas. Era como um grande tombo do alto da corda bamba.
Por muitas vezes ela se pegou nas mesmas ações tolas da letra de Forgetting, do David Gray: se lembrando, rebobinando as cenas, removendo as peças, se arrependendo...
Mas ao se lembrar de que aquele "artista" nunca esteve entre os seus preferidos e mais admirados, a bailarina pôde enfim retocar a maquiagem e colocar novamente a coroa. Ela estava pronta para dançar bem no tom do refrão. Só era preciso sacudir a poeira do breu e começar uma nova coreografia.
Ela o fez!
No final ele era só mais um palhaço que, incapaz de fazer a bailarina sorrir, foi banido do circo...
Seja bem-vindo!
Toda postagem tem um link de acesso à música a que me refiro, é só clicar. Assim você desfruta do texto acompanhado da trilha... Curta o momento!
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Um comentário:
O grande desafio de nosso tempo: trazer pro mundo real as coisas que ficam presas em nossa ilusão. É possível fazer isso? Claro. Basta um pouco de desprendimento e coragem.
O palhaço só foi mais um palhaço porque teve a chance de fazer diferente e não o fez. Esse é o tipo de coisa que tem regresso certo na alma dele, mas não do jeito bonito de antes, quando ganhou o sorriso mais lindo da bailarina. Este regresso tem nome de arrependimento. No mais, o que sempre vai existir é gente que queira viver a vida de fato (a minoria), e gente que só vai passar pela vida, acrescentando pouco a si e menos ainda ao mundo e às pessoas.
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